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terça-feira, 7 de abril de 2009

Nelson Rodrigues

Pretendo, a partir de hoje, publicar aqui algumas das mais bonitas e bem escritas crônicas de Nelson Rodrigues. São textos publicados entre 1955 e 1959 na "Manchete Esportiva", período este que compreende um dos principais periodos de transformação do futebol brasileiro; quando o esporte passou a mobilizar multidões cada vez maiores e despontou como modalidade nacional.
Tricolor assumido, Nelson parecia conseguir enxergar como ninguem a alma de cada torcedor, qualquer que fosse o time. Com muita sensiblidade e palavras bem escolhidas ele definiu com muito humor e alguma polêmica o perfil dos grandes times do rio e suas torcidas.


Hoje posto: "O tapa celestial".


Teoricamente, eu acho o seguinte: - não pode haver nada mais importante do que uma bofetada. Digo mais: - o ato de dar ou apanhar na cara é a grande, a inexcedível, a portentosa experiência terrena. Acresce que a bofetada tem um som específico que lhe valoriza a hediondez. E vamos e vanhamos: - devia se invetar uma bofetada muda. Felizmente, sempre que alguém dá ou apanha na cara as testemunhas são escassas e aceidentais: - uma meia dúzia de transeuntes, que não conhece nem a vítima, nem o agressor. Se fosse possível apanhar num sigilo de alcova, não haveria humilhação ou, pelo menos, a humilhação seria muito mais benigna. Mas o futebol não comporta nenhuma polidez, nenhuma cerimônia, nenhuma discrição. Tudo o que acontece num jogo, de bom ou de mau, tem uma assistência monstruosa. Imaginem um jogador a quem quebram a cara na presença de duzentas mil pessoas. Digo jogador e posso ampliar a lista: - o juiz, os banderinhas, os gandulas. Duzentas mil pessoas significam uma multidão astronômica. Basta dizer o seguinte: oitecentos gatos pingados fizeram a Revolução Francesa. Que não fariam duzentas mil pessoas desencadeadas? Mas uma tal massa não precisaria agir. Mesmo imóvel, mesmo calada, mesmo passiva, mesmo como simples testemunha de qualquer coisa - é apavorante. Um sujeito que lambe chicabon diante de tamanha platéia há de tremer nos seus alicerces. Sim, duzentas mil pessoas representam quatrocentos mil olhos! Ora, quatrocentos mil olhos devastam, dizimam, desnudam e humilham qualquer um. Imaginal o que não sentiu o juiz do match Brasil x Uruguai, ontem, no Maracanã. Foi caçado a tapas, a pontapés pelos orientais.* Já a agressão em si mesma, a correria e o susto traduzem umas dessas experiências terrenas que marcam para sempre. Mas vejamos as agravantes do episódio: - estavam lá, com uma inapelável eficiência, o rádio, a televisão, o jornal e o cinema. Trata-se, pois, de uma humilhação impressa, irradiada, televisionada, filmada. Pode-se desejar uma provação mais horrenda? Não, não é possível. Somemos as pessoas presentes com os ouvintes, os telespectadores, os leitores. E chegaremos à conclusão de que o escândalo teve, em verdade, uma audiência única. Nunca um bofetão foi tão visto, lido e ouvido como o de ontem. Teria errado o árbitro? Creio que sim. O foul foi, realmente, de uma nitidez indiscutível, sem, todavia, justificar a expulsão. Mas se os erros de um juiz merecerem, de suas vítimas, esse tipo de reação, acabou-se o futebol. Ou por outra: - o futebol vai virar galinheiro, mafuá, gafieira. Outra reflexão que o episódio de ontem comporta: - nós somos uns anjos, uns bucólicos, uns idílicos. Em Buenos Aires, perdemos, no apito, um Sul-Americano que, tecnicamente, era nosso. E longe de espancar o árbitro, os nossos jogadores, locutores e jornalistas se deram ao luxo de apanhar de sabre. Vejam vocês: - de sabre! O chico saiu de maca e quase de rabecão. Em Montevidéu, porque o Vasco teve o descaro de vencer o Peñarol, os locutores brasileiros foram apedrejados como adúlteras bíblicas. Aqui Obdulio dizimar, devastar, ceifar a pescoções um juiz brasileiro. Eu, então, numa melancolia digna de Casimiro de Abreu, digo a um companheiro: - "Foi por isso que eles ganharam a Copa de 50!"


Publicada em 30/6/1956



* Jogo da Taça do Atlântico entre Brasil e Uruguai (24/6/1956). Na vitória da seleção brasileira por 2 x 0, no Maracanã, os gols foram marcados por Zizinho (bangu) e Canário (América/RJ). O árbitro agredido foi Frederico Lopes.

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